quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

As Dores de Ser Bonzinho

Bonzinho é um cãozinho. Tem 5 anos, é um vira-lata bonitinho e sabe-se lá por quê seus donos quiseram lhe batizar desta maneira, mas por Bonzinho lhe chamaram, por insistência, Bonzinho atendia. Bonzinho foi o quinto de uma ninhada de sete, ele não conheceu muito dos seus irmãos, fora o Mais Velho e duas cadelinhas, no sentido ruim da palavra. O Mais Velho, seguido e admirado de perto por Bonzinho, é um vira-lata amarronzado, malandro, dono do próprio focinho, um cão das ruas. As duas cadelas não sabem fazer nada além de bocejarem com a barriga para o alto, pondo as patas para o ar, esperando um cafuné, são cadelas de madame, Bonzinho não tem muita afeição a elas. Bonzinho não se lembra da sua mãe, mas lembra-se do sentimento de ter sua cabeça lambida enquanto mamava, e como era quentinho, no meio dos seus irmãos, ficar naquela posição, protegido do mundo. Quando se lembra disto, Bonzinho fecha os olhos e acha que está contente. Bonzinho queria ser como seu irmão, sem amarras, sem coleiras, sem lei. Mas Bonzinho sempre foi bonzinho, até um pouco demais. Sempre fizeram acreditar que Bonzinho não era mais um vira-lata: “Bonzinho, seu focinho é o mais bonitinho de todos os outros cachorrinhos!”. “Bonzinho, como você é esperto!”. “Bonzinho, eu te amo!!!”. Bonzinho não entendia muito daquilo, sentia-se como qualquer outro cachorrinho e frente à tanto amor e carinho, somente rolava, de um lado para o outro, com a língua pra fora, gozando de toda aquela situação.


Bonzinho se fascinava era mesmo pelo cheiro vivo que vinha das calçadas, vivia pelas escapadas que dava sempre que alguém esquecia o portão da casa aberto ou quando chegava alguma visita. Ele não perdia uma oportunidade, sempre que podia, lá estava Bonzinho explodindo pela rua, em meio ao desconhecido, com todo aquele barulho e confusão que ele só vislumbrava pelos buracos do muro do quintal ou fantasiava com as histórias contadas pelo Mais Velho. As cadelas olhavam de lado, com desdém: “Ora, Bonzinho, você não foi feito para as ruas...”; “Deixa ele, vai acabar atropelado!”. Mas Bonzinho fingia não ouvir suas irmãs, caminhava com a cabeça baixa, ressabiado, em direção ao quintal, para logo, distrair-se perseguindo uma borboleta, a esmo. Como aquilo era bom! Aquilo já lhe satisfazia, o correr exasperado em direção aquele estranho ser voador e amarelo, ora aqui, ora ali, isso Bonzinho amava. Não iria se preocupar com o que falavam as cadelas se ele se divertia sozinho, perseguindo uma borboleta e como aquilo era bom. 

Quando chegava à noite, solto no quintal, Bonzinho fazia a festa, corria de um lado pra outro, olhava as estrelas e queria latir para elas, algumas vezes chegou a latir e aquilo era maravilhoso, melhor que perseguir borboletas, melhor que correr nas suas escapadas. O pessoal da casa estranhava: “O que será que deu em Bonzinho?!” Bonzinho continuava a correr de um lado para o outro, na esperança de alguém pular o muro e ele poder avançar, como assim lhe falaram para fazer um dia e ele, de alguma forma, sabia que era aquilo que devia ser feito. Ele não sabia como e nem o porquê, mas se alguém entrasse ele iria avançar. Não teria medo. De certo, não teria medo mesmo. E isso satisfazia Bonzinho, saber que não era apenas bonzinho, era corajoso. Corajoso e sabia latir pra lua e para as estrelas, pode um cachorro ser mais feliz que isso? Bonzinho se recusava a acreditar que existia felicidade maior que aquela. 


Isso foi até o dia que deixaram o portão aberto à noite, e como era natural à Bonzinho, ele explodiu portão à fora, chamado pelo cheiro das calçadas. E essa noite foi a mais feliz de sua vida. Bonzinho chafurdou o lixo, acabou comendo algumas coisas estragadas, e não importava, adorou a sensação. Bonzinho descobriu que a calçada da sua casa desembocava em outra calçada, e esta em uma outra, e esta outra em outra diferente, numa profusão sem número de calçadas que o deixou confuso. Confuso, mas feliz. Longe da sua casa, Bonzinho caminhou entre muitas pernas de pessoas que não eram as da sua casa, nem aquelas que vinham aos finais de semanas trazendo comidas em travessas. Bonzinho não tinha medo daquelas pernas. Latiu para dois outros cachorros, ambos menores, estava a fim de brigar, mas seus adversários estavam encoleirados. Pensou que talvez fosse melhor assim. E por toda a noite Bonzinho vagou... No caminho para casa, parou para olhar o céu e naquele dia ele estava ainda mais iluminado e brilhante. Bonzinho latiu para o alto como nunca tinha latido antes. Estava realizado. Voltou para o conforto do seu quintal e foi dormir após a maior escapada que tinha dado na sua vida de cão. Não era mais apenas o cãozinho Bonzinho. Era outra coisa. Dormiu esboçando um sorriso, com a língua pra fora, exausto. Jamais poderia supor que existia um pouco de lobo dentro de cada cão Bonzinho.

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